:: EDIÇÃO 013 :: História

ESTRANHAMENTOS A PARTIR DE FONTES HISTÓRICAS QUE SÃO CONTAMINADAS POR ESTRANHAMENTOS

No último texto buscamos visualizar um caso de “repensar” a partir de Montaigne. O renascentista francês problematizou o conceito de “selvagem” que era comumente designado para os diferentes povos originários que habitavam o continente americano antes da chegada dos europeus.  Continuaremos tratando desse texto, mas trazendo outros breves elementos interessantes sobre os estranhamentos envolvendo o contato entre franceses e originários no contexto colonial do Brasil. Com diferenças culturais, materiais, econômicas e sociais esses diferentes agentes de contato comportaram-se de maneiras peculiares a esse “grande encontro”, como denomina Todorov.

É comumente tratado pela historiografia as atuações de portugueses, franceses, espanhóis, ingleses e holandeses no processo de conquista e colonização dos territórios americanos durante a Época Moderna. É também amplamente relatado os gêneros descritivos sobre os biomas e as agentes dos espaços de contato ao longo desse processo de colonização no que hoje é territorializado e identificado como Brasil. Refletimos, no texto anterior, que são fontes históricas que ficaram e possibilitam visualizar, mesmo que vagamente, como se deram esses contatos e choques culturais. Ao mesmo tempo, é interessante tratarmos como amostras e vestígios que carecem de uma problematização por se tratarem do relato do ponto de vista do colonizador e do conquistador dos territórios e recursos naturais. E nem é preciso ir muito longe para mapear isso quando se nota a utilização de termos generalizantes como o próprio termo “índio”  e vulgares como “selvagens” para aqueles diferentes povos com suas histórias há tempos construídas e vividas nesses lugares. 

Em alguns desses escritos e ilustrações é possível perceber um choque de estranhamento com alguns povos que praticavam antropofagia, com julgamentos e condenações a esses atos que eram considerados “imorais” e “selvagens” para os cristãos europeus. Montaigne é um dos europeus que se enquadram nos casos de repensar a partir do ceticismo, naquela altura de época, sobre o que significava tal prática ao mesmo tempo em que coloca em cena no seus Ensaios dois estranhamentos: a do próprio colonizador (comum nos outros escritos) e dos povos que o colonizador passou a ter contato. Algo que torna esse texto particular e, para alguns, “a frente do seu tempo”,  por ser um ato de repensar de um europeu sobre os próprios atos e visões dos seus conterrâneos, também carregada de autocríticas sobre o seu povo.  Pois como ele diz,  “na verdade, cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra. E é natural, porque só podemos julgar da verdade e da razão de ser das coisas pelo exemplo e pela ideia dos usos e costumes do país em que vivemos. Neste a religião é sempre a melhor, administração excelente, e tudo o mais perfeito.”1MONTAIGNE, 2002 [1580]  p. 79

Quando este autor relativiza a alcunha de “selvagem” como aquela que deveria ser utilizada para tratar dos originários americanos, coloca em cena a perspectiva europeia “assustada/horrorizada” sobre tais práticas, mas também a desses indivíduos retratados em alguns dos cantos cristãos da Europa. Invocando a oportunidade de contato entre três indígenas das “Terras brasílicas” trazidos para a corte francesa e o rei Carlos IX, Montaigne disse que o monarca e nobres mostraram sobre como era viver em cidades francesas e as festas para aqueles estrangeiros. Posteriormente, alguém perguntando aos convidados indígenas o que estavam achando da realidade diferente a que presenciaram naqueles dias na França,  recebeu a resposta de um deles que vale a pena ser registrada, e que fala por si só:

Disseram antes de tudo que lhes parecia estranho tão grande número de homens de alta estatura e barba na cara, robustos e armados e que se achavam junto do rei (provavelmente se referiam aos suíços da guarda) se sujeitassem em obedecer a uma criança e que fora mais natural se escolhessem um deles para o comando. Em segundo lugar observaram que há entre nós gente bem alimentada, gozando as comodidades da vida, enquanto metades de homens emagrecidos, esfaimados, miseráveis mendigam às portas dos outros (em sua linguagem metafórica tais infelizes chamam ‘metades’); e acham extraordinário que essas metades de homens suportem tanta injustiça sem se revoltarem e incendiarem as casas dos demais.

Esse pequeno discurso e o que trouxemos até aqui em continuidade com a coluna anterior é uma pequena parte do que tentamos pensar sobre o estranhamento em relação aos comportamentos e estilos de vida do outro. Como dito, isso ocorreu entre os agentes de contato do período histórico mencionado, a saber,  originários e europeus durante o período classicamente conhecido como moderno. O reconhecimento dessa diferença e o que se fez e se faz sobre isso é o que ficou e fica para  história com o caso das colonizações e outros processos históricos a exemplo do imperialismo na África, e que continuam até hoje nos discursos e visões sobre os próprios conterrâneos (até porque as fronteiras geopolíticas não dão conta e não coincidem necessariamente com as fronteiras culturais e sociais).  Outro ponto de reflexão também resgatado é sobre o tipo de fontes históricas que utilizamos para analisar os estranhamentos por se tratarem de documentos (materiais ou imateriais) que são preenchidos pelos próprios estranhamentos de quem os produz.

Todas as notas

[1] MONTAIGNE, 2002 [1580]  p. 79

Referências Bibliográficas

BOXER, Charles R. O império marítimo português, 1415-1825. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
MARCONDES, Danilo. “Montaigne, a descoberta do Novo Mundo e o ceticismo Moderno” In: Kriterion, Belo Horizonte, n. 126, dez. 2012, pp. 421-433.
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. São Paulo: Martins Fontes, 2002 (Livro I). 
TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1993. 

 




Hiago Fernandes
27 anos de vida e Fé Cristã. Mestrando em História Social no Programa de Pós-graduação da UERJ e graduado em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). É pesquisador e atua como membro do Grupo de Trabalho do JIIAR (Grupo de Pesquisa Justiças e Impérios Ibéricos de Antigo Regime-CNPq/UFF/PPGHS-UERJ) e do Laboratório de História Regional e Patrimônio (LAHIRP). Atua como coordenador técnico do Seminário Permanente Internacional Cidades e Impérios: dinâmicas locais, fluxos Globais (CIES-Iscte/UFF/Universidade do Minho).

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *