:: Edição 011 :: Sociologia

IDEOLOGIA E REALIDADE NA SOCIEDADE FRAGMENTADA

Nos textos presentes nesse espaço de discussão, um tema tem sido recorrente: a reorganização dos laços sociais, dando origem a um mundo mais fragmentado e fluído, bem como os desafios que essa transformação tem lançado sobre o fazer sociológico desde o século passado até os dias atuais. Uma das premissas que têm fundamentado as discussões em torno desse tema é a noção de que essa transformação está baseada na erosão de estruturas típicas da sociedade moderna e sua sociabilidade industrial.

David Graeber, em entrevista traduzida pelo portal Outras Palavras, em outubro de 20201 Link. Acessado em 14/11/2021, às 13:28. , avalia que os pilares, ou mistificações, conforme termo usado por ele, que sustentavam ideologicamente o capitalismo ruíram. O pensador anarquista cita ao menos três deles. O primeiro refere-se à crença de que, embora produza desigualdades, o capitalismo também produz uma possibilidade de mobilidade social que lhe é intrínseca. O segundo diz respeito à noção de que a inovação tecnológica constante e acessível é um mote indispensável ao capitalismo e, por fim, a ideia de que o sistema capitalista gera estabilidade democrática.  Para ele, o último pilar que resta ao capitalismo é a moral: “A sacralidade do trabalho, a sacralidade da dívida, a sacralidade do ‘mercado’ — todas essas coisas estão profundamente internalizadas”. Essa perspectiva não é uma novidade. Löwy, em seu comentário acerca da proposição de Walter Benjamin do capitalismo enquanto religião, fala do culto permanente  que ele representa e da culpabilização enquanto ponto basilar dessa estrutura, a partir da generalização do desespero. O quadro apresentado por Graeber ainda pode suscitar a discussão a respeito dos caminhos pelos quais a ideologia pode se estruturar e, mais ainda, permite pensar sobre sua estrutura. 

O conceito de fetichismo proposto por Marx,  é  de central importância para sua reflexão  sobre a sociedade capitalista e não apenas na dimensão econômica da circulação de mercadorias e das trocas materiais, mas na própria dimensão da construção de uma subjetividade própria às pessoas inseridas nessa sociedade, ou seja, na construção do ideário do individualismo inaugurado pelo capitalismo moderno. Isso porque a noção de fetichismo carrega em si o que poderíamos referir como um ponto nodal do capitalismo: a maneira  pela qual ele consegue, ou melhor, precisa, dissimular, nas mais diversas esferas da vida social,  os reais processos que garantem sua consolidação e reprodução.  Zizek (1999), também toca nesse ponto ao lembrar que a compreensão da sociedade capitalista como uma realidade que “só consegue se reproduzir na medida em que seja desconhecido e desconsiderado”2 Zizek, 1999, p 312. , já poderia ser encontrada na consideração da noção clássica de ideologia, que apontava para o fato de aquilo que estava sendo colocado por Marx não era, simplesmente , que é necessário nos livrarmos da ideologia para ver a realidade social como ela realmente é (como quem desembaça as lentes sujas do óculos). A questão é perceber que a realidade não pode se reproduzir sem sua máscara.  

A proposta argumentativa apresentada por Zizek ao relacionar esse quadro conceitual e a conjuntura presente é a de que o caminho usual da crítica à ideologia é impactado por um movimento importante: a ilusão ideológica não reside no que o indivíduo sabe da realidade, mas sim no próprio fazer cotidiano. Ele resgata a leitura lacaniana do conceito marxiano de fetichismo, colocando que o potencial subversivo daquela proposição está justamente na maneira como Marx entende a relação entre pessoas e coisas: O sujeito pode entender ter superado a ilusão ideológica em sua personalidade relacional, mas as crenças que ele julga ter superado se encarnam nas relações sociais estabelecidas entre as coisas. As próprias coisas acreditam no lugar dos sujeitos. Nesse cenário, a ideologia passa a designar não apenas uma visão parcial e falseada da realidade, mas sim uma totalidade que se empenha em esconder os vestígios de sua própria impossibilidade. 

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[1]  Link. Acessado em 14/11/2021, às 13:28. 
[2] Zizek, 1999, p 312.

Referências Bibliográficas

 GRAEBER, David. Dos pilares do capitalismo, sobrou apenas a moral. Entrevista a Lenart J. Kučić, no Dissenz | Tradução: Victoria Moawad. Disponível em: Link direto.
LÖWY, Michael. A jaula de aço: Max Weber e o marxismo weberiano. Boitempo Editorial, São Paulo, Brasil, 2014, 138 p. 
MARX, Karl. O Capital: Crítica da economia política. Livro 1/ Karl Marx; tradução de Reginaldo Sant’Anna – 31 ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. 
ZIZEK, Slavoj.  “Como Marx inventou o sintoma”, in Um mapa da ideologia. Contraponto, Rio de Janeiro, 1999.




Pattrick Pinheiro
28 anos de vida e Fé Cristã. Mestrando em Sociologia, com ênfase em Sociologia da Religião. Bacharel e Licenciado em Ciências Sociais, com domínio adicional em Cristianismo e Diálogo com o Mundo Contemporâneo. Colunista, editor e articulador do Espírito&Atualidade (2014 - atual). Aluno da Clínica de Música e ADD ASAPH Ministérios desde 2008.

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