Hoje a ideia é fazer um breve mapeamento das problemáticas, mas também das possibilidades do ato de interpretação das fontes históricas, que passam pela linguagem escrita. Já dialogamos numa outra ocasião sobre a escrita da história a partir dos vestígios deixados pelos nossos antepassados em diferentes épocas e sociedades.1 Vimos em uma das edições (Edição 05) como houve mudanças no “lugar social de produção da História” sobre a percepção de quais seriam os “vestígios considerados legítimos”, outrora limitados à escrita, de documentos considerados “oficiais”, e analisados apenas do ponto de vista do Velho Continente. Ver mais em: FERNANDES, Hiago Rangel. Operação historiográfica: uso e leitura das fontes na interdisciplinaridade. In: Encontro Modal, 2022. Disponível em: https://modal.asaphministerios.com/2022/edicao-005/operacao-historiografica-uso-e-leitura-das-fontes-na-interdisciplinaridade/. Sem desconsiderar a diversidade de fontes tanto escritas como materiais e imateriais das sociedades a ideia é voltarmos a pensar sobre esses resquícios do passado (seja ele distante ou recente), mas no campo das literaturas e das comunicações políticas. Uma oportunidade, talvez, de levantarmos os desafios que são próprios do campo, mas que também contornam o nosso campo da fé: o ato de interpretação.
O ato de interpretação dos textos escritos passa intrinsecamente pela questão da linguagem.2 Não custa fazer menção a de que escrita é linguagem, mas linguagem não é apenas escrita, como há muito tempo se concordou no campo da linguística e dos diálogos com as outras ciências humanas – uma questão quase batida, digamos. Mas concentrando-se na cultura escrita que herdamos das nossas tradições político-jurídicas ibéricas3 CAMARINHAS, 2018. e de religiosidade cristã do ocidente europeu (em convivência histórica e apropriações/contatos de/com outras tradições extra europeias) vemos como o ato de interpretação no presente e do passado, mediado pela linguagem, está perpassado pelo processo de recepção.
Recepção aqui não é colocada apenas no sentido de ser um texto e o seu conteúdo bem-vindos ou não numa dada constelação social e cultural, mas da própria leitura, tradução e utilização mediante contextos ímpares. É uma ação que em diferentes momentos e situações históricas esbarrou em repetições de significantes e mudanças de significados, e na tentativa de criação de relação entre um significante anterior com um significado posterior por parte de homens e mulheres.4 SKINNER, 2005.
Esse ato de recepcionar, que se configura no interior de um ato de interpretação aqui citado, é característico da maneira como nos organizamos em sociedade durante o tempo e no espaço e isso teve e tem sérios desdobramentos em diferentes áreas. Podemos citar, por exemplo, no campo jurídico-político e também cultural que formaram e transformaram as instâncias de poder e práticas sociais5 HESPANHA, 2005. (e aqui mais uma vez, também a lembrança da significação da fé). Alguns desses efeitos oriundos da recepção – inclusive por parte dos pesquisadores das ciências políticas e história das ideias são: i) o risco e a prática comum de anacronismos, “teleologismos” e também de um ato de fala característico do que Bourdieu (1989) levanta com a ideia de “estruturas estruturantes”: ii) a criação de novas significações a partir de velhos significantes em diferentes contextos.
Observando essas problemáticas que Quentin Skinner (2017)6 A partir da sua teoria e metodologia chamada de “contextualismo linguístico”. Ver mais em: SKINNER, Quentin. Visões da política. Sobre os métodos históricos. Algés: Difel, 2005. sugere o estudo das palavras em seu contexto. Não apenas no sentido do seu significado no âmbito do vocabulário de época, mas como foram utilizadas e as suas funções, já que em diferentes momentos um mesmo significante, como “liberdade”, poderia ter sido usado com uma multiplicidade de intenções e entendimentos, isto é, significados. É mais ou menos a precaução para não corrermos o risco na procura de um “significado essencial de uma ideia”, mas do movimento e matrizes pelos quais essas ideias se inserem.
Para encerrar e exemplificar uma situação podemos mencionar o clássico caso de Maquiavel e as suas obras, principalmente O Príncipe. As referências a esse humanista florentino que temos acesso até hoje são mais interpretações dos neoescolásticos jesuítas – contrários ao pensamento político-filosófico de Maquiavel – do que leituras preocupadas com “o que o autor quis dizer com o que disse”.7BIGNOTTO, 2003.
Ambos os movimentos (dos “antimaquiavélicos” e dos estudiosos de Maquiavel) passam por leituras, interpretação e também recepção. As diferenças, talvez, giram em torno também do que foi mencionado acima: as utilizações, funções, intenções e contextos que a interpretação se insere. Toda interpretação tem os seus limites próprios da “internalidade” e “externalidade” do texto; dos efeitos e significações que fogem do controle do próprio autor (que o media com o uso da linguagem). Cenário esse que se agrava mediante os contextos linguísticos, políticos e culturais dos seus receptores.
Reconhecer as limitações e possibilidades da interpretação parece ser um passo saudável para entendê-la como um processo, principalmente se a intenção for a de ser a menos anacrônica possível. Será que isso também diz alguma coisa em relação aos nossos ambientes religiosos? E para o nosso movimento pessoal de significação da fé, seria de alguma forma um passo acrescentador?
[1] Vimos em uma das edições (Edição 05) como houve mudanças no “lugar social de produção da História” sobre a percepção de quais seriam os “vestígios considerados legítimos”, outrora limitados à escrita, de documentos considerados “oficiais”, e analisados apenas do ponto de vista do Velho Continente. Ver mais em: FERNANDES, Hiago Rangel. Operação historiográfica: uso e leitura das fontes na interdisciplinaridade. In: Encontro Modal, 2022. Disponível em: https://modal.asaphministerios.com/2022/edicao-005/operacao-historiografica-uso-e-leitura-das-fontes-na-interdisciplinaridade/.
[2] Não custa fazer menção a de que escrita é linguagem, mas linguagem não é apenas escrita, como há muito tempo se concordou no campo da linguística e dos diálogos com as outras ciências humanas – uma questão quase batida, digamos.
[3] CAMARINHAS, 2018.
[4] SKINNER, 2005.
[5] HESPANHA, 2005.
[6] A partir da sua teoria e metodologia chamada de “contextualismo linguístico”. Ver mais em: SKINNER, Quentin. Visões da política. Sobre os métodos históricos. Algés: Difel, 2005.
[7] BIGNOTTO, 2003.