:: Edição 003 :: História

RECONSIDERAÇÕES DOS “LUGARES DE MEMÓRIA” E A PERCEPÇÃO DA RELAÇÃO ENTRE PASSADO E O PRESENTE

No ano passado estivemos diante de alguns movimentos sociais contestatórios cunhados como Black lives matter (Vidas negras importam), que levantaram questões como racismo e desigualdade social a partir do episódio envolvendo a morte de George Floyd por policiais numa ocasião de abordagem nos Estados Unidos. Durante esses atos espalhados por outros países da América e da Europa suscitou-se uma discussão sobre danificação e derrubada de estátuas representantes de algumas personalidades envolvidas no passado moderno com o tráfico transatlântico de escravizados.

De um lado, ecoavam-se discursos em favor da manutenção dos monumentos com a argumentação de que a “história” não poderia ser mudada, e que as figuras lembradas fizeram parte da construção e economia da cidade/país nas suas épocas, além de outros, inclusive, pesquisadores do campo das ciências sociais, que também defendiam a preservação, mas para servirem de instrumentos didáticos sobre os contextos históricos que os “vultos históricos” faziam alusão.

De outro, praticantes das derrubadas de estátuas, na sua maioria ativistas de um dos movimentos identitários negro, defenderam suas ações com base na percepção de que os poderes institucionais do Estado1Responsáveis pelo levantamento dessas materialidades de memória. estariam contribuindo com a exaltação de indivíduos envolvidos com a prática do racismo e o sofrimento de seus ancestrais, levando-se ao esquecimento desse fenômeno. Alegam também não haver razões para no presente serem essas figuras homenageadas tendo os mesmos objetivos memorialísticos da época de suas construções, nesse caso séculos XIX e XX.

 A prática de levantamento de estátuas e outros monumentos para a lembrança de personalidades e atos é oriunda da antiguidade, tanto nas chamadas sociedades ocidentais como orientais. No entanto, durante o processo histórico construíram-se significados e objetivos.  Investigadores do campo da memória e identidade afirmam que a prática contemporânea de construções de lugares de memória,2Exemplos de lugares de memória, segundo o seu conceituador, o historiador francês Pierre Nora, são os museus, arquivos, cemitérios, coleções, santuários, entre outros. Ou seja, resíduos materiais e simbólicos que são atribuídos à função de testemunha de um passado, portando caráter comemorativo para lembrar e tentar “manter” aquilo que se esquece pelo curso da história. Em suas palavras “[…] são os marcos testemunhas de uma outra era, das ilusões da eternidade” (NORA, 1993, p. 13).  entre eles, placas e estátuas em espaços públicos3Como praças públicas, museus, entre outros espaços ditos públicos. é relacionada à formação dos Estados nacionais do séc. XIX, a partir do qual exercem função partícipe nas narrativas relacionadas a um “passado mítico”, que sustentam ideologicamente a comunidade imaginada, envolvendo sentimento de pertencimento em escala dito nacional, regional ou local. 

Poderíamos, a partir dessa abordagem, perceber as disputas envolvendo o exemplo citado dos nossos dias e as argumentações contrárias.4Tivemos outros casos parecidos aqui no Brasil, quando, por exemplo, houve o debate acerca das pinturas feitas ao Monumento às Bandeiras, em São Paulo, que homenageava os chamados bandeirantes do período colonial, responsáveis pela captura de índios e negros para a escravização. Não diz respeito apenas a esculturas, mas a nomes de espaços, como pontes, ruas, colégios, entre outros. Matéria 01: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2016/09/monumentos-amanhecem-pichados-com-tinta-colorida-em-sp.html. Matéria 02: https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2019/07/25/grupo-muda-nome-da-ponte-costa-e-silva-em-brasilia-para-marielle-franco.ghtml. Matéria 03: https://exame.com/brasil/escola-do-rio-mudar-ade-nome-a-pedido-da-comissao-da-verdade/ Os atores indicam projetar sobre o passado uma visão dos “fatos” e atribuem ao presente uma função com desdobramentos posteriores. Uma delas é a de reparar a memória nos espaços e o que consideram como heranças danosas do fenômeno histórico representado; outra a de aproveitar a memória materialmente construída para seu aproveitamento “pedagógico” na atualidade,5Adotando o patrimônio como objeto de ensino sobre um aspecto enxergado sobre o passado. e ainda a que não coloca para o presente a função de reconstrução e ressignificação nem da materialidade nem das situações, que para o primeiro grupo não ficaram no passado apenas, projetando-se uma conservação para o presente e futuro. 

Os grupos sociais, seguindo nessa linha, disputam as narrativas e, consequentemente, as materialidades que as representam, entendendo-as como instrumentos para a prática social, visando à conservação de memória e status social ou sua transformação ao romperem o que consideram como “silenciamentos”. Passam, portanto, pela relação entre enxergarem e construírem uma visão do passado para modificarem ou não o espaço no que se atribuem como seu presente, visando, ao mesmo tempo, o futuro. 

Manifestantes derrubando estátua de um comerciante de escravizados em Bristol, Inglaterra.
Fonte: ESTÁTUA DE ESCRAVOCRATA BRITÂNICO É DERRUBADA POR MANIFESTANTES É RETIRADA DO RIO. G1. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/06/11/estatua-de-escravocrata-britanico-derrubada-por-manifestantes-e-retirada-do-rio.ghtml. Acesso em 31 de maio de 2021.
Estátua de manifestante do Black lives matter que substituiu a do escravocrata em Bristol, na Inglaterra.
Fonte: ESTÁTUA DE ESCRAVOCRATA DERRUBADA EM BRISTOL É SUBSTITUÍDA POR ESCULTURA DE MANIFESTANTE DO BLACK LIVES MATTER. Casa Vogue. Disponível em: https://casavogue.globo.com/Arquitetura/Cidade/noticia/2020/07/estatua-de-traficante-de-escravos-derrubada-em-bristol-e-substituida-por-escultura-de-manifestante-do-black-lives-matter.html. Acesso em 31 de maio de 2021.
Monumento às Bandeiras pintado
Fonte: MONUMENTOS AMANHECEM PINCHADOS COM TINTA COLORIDA EM SP. G1. Disponível em: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2016/09/monumentos-amanhecem-pichados-com-tinta-colorida-em-sp.html. Acesso em 31 de maio de 2021.
TODAS AS NOTAS

  1. Responsáveis pelo levantamento dessas materialidades de memória.
  2. Exemplos de lugares de memória, segundo o seu conceituador, o historiador francês Pierre Nora, são os museus, arquivos, cemitérios, coleções, santuários, entre outros. Ou seja, resíduos materiais e simbólicos que são atribuídos à função de testemunha de um passado, portando caráter comemorativo para lembrar e tentar “manter” aquilo que se esquece pelo curso da história. Em suas palavras “[...] são os marcos testemunhas de uma outra era, das ilusões da eternidade” (NORA, 1993, p. 13). 
  3. Como praças públicas, museus, entre outros espaços ditos públicos. 
  4. Tivemos outros casos parecidos aqui no Brasil, quando, por exemplo, houve o debate acerca das pinturas feitas ao Monumento às Bandeiras, em São Paulo, que homenageava os chamados bandeirantes do período colonial, responsáveis pela captura de índios e negros para a escravização. Não diz respeito apenas a esculturas, mas a nomes de espaços, como pontes, ruas, colégios, entre outros. Matéria 01: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2016/09/monumentos-amanhecem-pichados-com-tinta-colorida-em-sp.html. Matéria 02: https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2019/07/25/grupo-muda-nome-da-ponte-costa-e-silva-em-brasilia-para-marielle-franco.ghtml. Matéria 03: https://exame.com/brasil/escola-do-rio-mudar-ade-nome-a-pedido-da-comissao-da-verdade/
  5. Adotando o patrimônio como objeto de ensino sobre um aspecto enxergado sobre o passado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ATALLAH, Cláudia C. A. “Ensino de História, memória e regionalismo: uma análise do currículo de Campos dos Goytacazes”. In: MÉTIS: história & cultura, Caixas do Sul/SC, v.19, n. 38, jan/jun 2020m pp. 245-265. 
“ESTÁTUA DE ESCRAVOCRATA BRITÂNICO É DERRUBADA POR MANIFESTANTES É RETIRADA DO RIO”. G1. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/06/11/estatua-de-escravocrata-britanico-derrubada-por-manifestantes-e-retirada-do-rio.ghtml. Acesso em 31 de maio de 2021.
“ESTÁTUA DE ESCRAVOCRATA DERRUBADA EM BRISTOL É SUBSTITUÍDA POR ESCULTURA DE MANIFESTANTE DO BLACK LIVES MATTER”. Casa Vogue. Disponível em: https://casavogue.globo.com/Arquitetura/Cidade/noticia/2020/07/estatua-de-traficante-de-escravos-derrubada-em-bristol-e-substituida-por-escultura-de-manifestante-do-black-lives-matter.html. Acesso em 31 de maio de 2021.
“MONUMENTOS AMANHECEM PINCHADOS COM TINTA COLORIDA EM SP”. G1. Disponível em: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2016/09/monumentos-amanhecem-pichados-com-tinta-colorida-em-sp.html. Acesso em 31 de maio de 2021.
NORA, Pierre. “Entre Memória e História. A problemática dos lugares”. In: Proj. História, São Paulo, dez. 1993, pp. 7-28.
“TEMA DE REDAÇÃO: a destruição de monumentos como forma de protesto. Destruir ou preservar? Entenda os argumentos desse debate acalorado”. Guia do estudante. Disponível em: https://guiadoestudante.abril.com.br/redacao/tema-de-redacao-a-destruicao-de-monumentos-como-forma-de-protesto/. Acessado em 31 de maio de 2021. 




Hiago Fernandes
27 anos de vida e Fé Cristã. Mestrando em História Social no Programa de Pós-graduação da UERJ e graduado em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). É pesquisador e atua como membro do Grupo de Trabalho do JIIAR (Grupo de Pesquisa Justiças e Impérios Ibéricos de Antigo Regime-CNPq/UFF/PPGHS-UERJ) e do Laboratório de História Regional e Patrimônio (LAHIRP). Atua como coordenador técnico do Seminário Permanente Internacional Cidades e Impérios: dinâmicas locais, fluxos Globais (CIES-Iscte/UFF/Universidade do Minho).

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