:: Edição 012 :: História

MONTAIGNE: um caso renascentista do repensar no contexto de expansão marítima europeia

O ser humano historicamente se construiu enquanto ser de contatos. Alguns filósofos chegaram a pensar que esse processo fosse parte de uma essência sua, isto é, de um apetite de sociabilidade (zoom politikon) como julgou Aristóteles, Cícero e a tradição tomista retomada por Locke.  Outros dizem que foi por contingência e demandas exclusivamente históricas. 

Para além dos contatos micros do cotidiano – que por si só transbordam universos de possibilidades –, é possível visualizar contatos entre diferentes culturas em alguns momentos históricos. Dos vários exemplos que podemos tentar reconstituir trago um exemplo interessante de se perceber enquanto ato de repensar e remodelar através dos discursos ecoado pelo humanista francês chamado Michel de Montaigne. 

Tzvetan Todorov, autor do livro “A conquista da América: a questão do Outro”, é  quem ecoa a ideia de que o contato entre os diferentes povos americanos e os europeus foi o encontro mais surpreendente da história. Uma das razões foi o choque cultural que é muito bem retratado nos relatos de viagem que são de natureza e da ótica do colonizador. 

Montaigne é um dos autores que retrata esse momento a partir de uma ótica europeia de quem não esteve na “França Antártica” (região do Rio de Janeiro). Entretanto, parecia ser alguém que trouxe ideias relativistas não tão comuns para a sua posição e época acerca dos povos indígenas da América. Utilizando o vocabulário e ainda contaminado com o contexto linguístico e teia de significados da sua época, Montaigne relativizou a denominação desses povos como selvagens nos seus Ensaios [1580-1588]:

“[…] não vejo nada de bárbaro ou selvagem no que dizem daqueles povos […]. Na verdade, considera bárbaro o que não se pratica em sua terra. E é natural, porque só podemos julgar da verdade e da razão de ser das coisas pelo exemplo e pela ideia dos usos e costumes do país em que vivemos. Neste a religião é sempre a melhor, a administração excelente, e tudo o mais perfeito […]. Esses povos não me parecem, pois, merecer o qualitativo de selvagens somente por não terem sido senão muito pouco modificados pela ingerência do espírito humano e não haverem quase nada perdido de sua simplicidade primitiva […]. Não me parece excessivo julgar bárbaros tais atos de crueldade [a antropofagia], mas que o fato de condenar tais defeitos não nos leve à cegueira acerca dos nossos. Estimo que é mais bárbaro comer um homem vivo do que o comer depois de morto; e é pior esquartejar um homem entre suplícios e tormentos e o queimar aos poucos, ou entregá-los a cães e porcos, a pretexto de devoção e fé, como não somente o lemos mas vimos ocorrer entre vizinhos nossos conterrâneos; e isso em verdade é bem mais grave do que assar e comer um homem previamente executado […].  Podemos qualificar esses povos como bárbaros em dado apenas ouvidos à inteligência, mas nunca se os compararmos a nós mesmos, que os excedemos em toda sorte de barbaridades” (MONTAIGNE, 2002, I, p. 79).

Mesmo assim, ele foi um sintoma do que o Danilo Marcondes considera ter sido o momento mais importante para a ruptura do pensamento medieval e início do pensamento moderno com o “argumento antropológico” e  as dúvidas céticas. O contato com diferentes povos e paisagens causou uma espécie de choque e questionamentos às tradições de pensamento sobre o mundo existente até então. Nesse contexto, se somam as influências céticas/pirrônicas dos textos redescobertos pelos humanistas desse período do século XVI. 

O resultado foi uma série de debates acerca de uma natureza humana ou do significado de práticas culturais consideradas “intrigantes”, além das estratégias de dominação e estereótipos. Em suma, podemos dizer que prevaleceram os valores e referências eurocêntricas/etnocêntricas que ficaram para a história, e o mais inquietante: é dessas fontes escritas pelos “vencedores”/colonizadores que temos parte do que se sabe acerca desses povos no momento deste “grande encontro”. Aí está um desafio de repensar e remodelar, e fazer a atividade de contrapelo para não apenas ecoarmos referências exclusivas de uma parte do mundo.

Referências Bibliográficas

MONTAIGNE, Michel de. Ensaios. São Paulo: Martins Fontes, 2002 (Livro I). 
TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1993. 




Hiago Fernandes
27 anos de vida e Fé Cristã. Mestrando em História Social no Programa de Pós-graduação da UERJ e graduado em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). É pesquisador e atua como membro do Grupo de Trabalho do JIIAR (Grupo de Pesquisa Justiças e Impérios Ibéricos de Antigo Regime-CNPq/UFF/PPGHS-UERJ) e do Laboratório de História Regional e Patrimônio (LAHIRP). Atua como coordenador técnico do Seminário Permanente Internacional Cidades e Impérios: dinâmicas locais, fluxos Globais (CIES-Iscte/UFF/Universidade do Minho).

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