:: Edição 002 :: História

AS QUESTÕES CULTURAIS NAS REFORMAS RELIGIOSAS DA MODERNIDADE: UMA REFLEXÃO SOBRE FÉ E VIVÊNCIAS NA HISTÓRIA

Há quatro anos víamos em vários espaços algumas celebrações em torno dos quinhentos anos de uma série de eventos de caráter religioso e político, que deram início a fundações de novas igrejas cristãs não ligadas à Igreja de Roma, chamada posteriormente de Reforma Protestante. Como destacado pela historiografia, os séculos XV e XVI foram palcos de problemáticas na ordem política e social na Europa através do envolvimento de diferentes agentes que, tendo como estandarte a fé, geraram conflitos políticos e causaram uma série de movimentos.1Como migrações, perseguições, missões evangelísticas para além do Velho Continente, entre outros.

Proponho pensarmos como as questões culturais serviram como catalisadores dos debates e movimentos em torno da fé, que reverberam em diferentes contextos históricos na formação de segmentos religiosos e doutrinários presentes ainda em nossos dias.2Apesar, é claro, de transformações próprias do processo histórico de ações humanas em diferentes contextos culturais, por exemplo. A partir de determinados “flashes”3Através de filmes, séries, jogos, e até durante determinados discursos no ambiente escolar., geralmente temos a imagem de uma Europa – local desses eventos religiosos no interior da cristandade, – como homogênea, onde uma única Igreja, com sede em Roma, difundia seus modelos de pensamento e modos de ser nas comunidades. 

No entanto, várias investigações nos apresentam perspectivas que apontam para as dificuldades nesse processo, já que o continente era povoado por diferentes povos e tradições, inclusive com diferenças entre elites e populachos. Tendo em vista essa realidade foi que agentes da Igreja, nesses diferentes territórios, incorporaram elementos culturais dessas localidades, não somente como “estratégia de convencimento”, mas porque eles faziam parte daquele universo social local e davam sentido tanto para eles mesmos quanto para os demais  fiéis. 

A questão cultural se fez presente também nos movimentos ditos protestantes, pois é a partir da diversidade que surgiram diferentes segmentos, concepções acerca da fé e práticas doutrinárias. Considerando a crítica literária que vê na atuação dos reformadores dos Quinhentos4Como Martinho Lutero, João Calvino, Thomas Müntzer, entre outros. mais uma chegada do que uma partida,5Apesar de importantes e grandes inovações do ponto de vista da ação intelectual e prática. é de se perceber como desde meados da Idade Média  a circulação de pessoas e produtos pelas cruzadas, bem como a recuperação de textos greco-romanos pelos humanistas no limiar da Modernidade – a exemplo dos escritos do cético pirrônico Sexto Empírico – contribuíram na crítica filosófica de reformadores católicos, como Erasmo de Rotterdam, e dos chamados “protestantes”, a exemplo de Martinho Lutero, como nos sugere Richard Popkin.6POPKIN, Richard H. História do Ceticismo de Erasmo a Spinoza, trad. Danilo Marcondes de Sousa Filho. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2000. 

Além do contato de cristãos com tradições culturais diferentes nas próprias localidades europeias, o que foi estabelecido gradualmente com outros povos da África, Oriente Extremo e Médio propiciaram intercâmbios culturais e materiais que deram condições técnicas e espirituais para movimentos intelectuais que, por sua vez, influenciaram – através  da prática de traduções e recuperação de textos antigos – nos movimentos reformadores da Igreja, além das questões políticas envolvidas no apoio de elites a essas causas. 

Um ponto que podemos refletir, a partir desse pequeno histórico, é sobre num discurso que considera a existência de uma herança direta e “pura” por parte dos cristãos atuais em relação aos primeiros seguidores de Jesus, ignorando não só as questões culturais do cristianismo na Antiguidade, bem como a historicidade e as contribuições das culturas locais, regionais e internacionais na própria definição de fé, e modos da suas próprias comunidades.7Segundo Popkin, Lutero também negou a influência cultural “pagã” do pirronismo recuperado na sua época pelos renascentistas, e ainda condenou quem teria, segundo ele, sido influenciado por ela, mas que se m
anifestou na sua crítica ao critério de conhecimento das verdades da fé que os católicos diziam ser correto apenas o estabelecido pela tradição da Igreja Mãe. Defendendo-se, como outros reformadores, da acusação de ceticismo, condenou a suspensão de juízo de Erasmo, chamando-o de cético, já que este considerava impossível acessar a verdade da Revelação e da fé pela leitura simples das Escrituras por conterem passagens obscuras e de difícil compreensão. Erasmo havia preferido a suspensão do juízo e de qualquer esforço teológico de interpretação, defendendo um cristianismo piedoso e simples, deixando para a Igreja Católica a decisão sobre as questões da fé.
 

Esse caldo de situações sugere que as interpretações acerca da fé e as práticas advindas delas, como a que mencionamos brevemente no interior da cristandade,  estão situadas no processo histórico, oriundas a partir de trocas e vivências culturais que geram formatos com manutenções e inovações. O reconhecimento da diversidade cultural parece positivo na medida em que permite perceber a nossa humanidade, e como a revelação, na visão cristã, se apresenta a ela diante desta condição. Através desta percepção nos movemos à busca da compreensão daquilo que dizemos acreditar e ouvimos, além de agirmos para a inclusão, permitindo construções frutíferas e a não negação e desejo de aniquilação do que é parte do chamado “outro”.

comercio
Comércio de longa distância no final do Medievo e início da Idade Moderna. Fonte: Google Sites
as cruzadas
Fonte: PEDRO, Antonio. História em mapas. São Paulo: Moderna, 1983. Disponível em: ALVARENGA, Maria; CARVALHO, Alessandra; SOUZA, Mônica L.; AZEREDO, Edson G. Pré-vestibular social: história, v.1. Rio de Janeiro: Fundação Cecierj, 2014.
TODAS AS NOTAS

  1. Como migrações, perseguições, missões evangelísticas para além do Velho Continente, entre outros.
  2. Apesar, é claro, de transformações próprias do processo histórico de ações humanas em diferentes contextos culturais, por exemplo. 
  3. Através de filmes, séries, jogos, e até durante determinados discursos no ambiente escolar.
  4. Como Martinho Lutero, João Calvino, Thomas Müntzer, entre outros.
  5. Apesar de importantes e grandes inovações do ponto de vista da ação intelectual e prática.
  6. POPKIN, Richard H. História do Ceticismo de Erasmo a Spinoza, trad. Danilo Marcondes de Sousa Filho. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2000.
  7. Segundo Popkin, Lutero também negou a influência cultural “pagã” do pirronismo recuperado na sua época pelos renascentistas, e ainda condenou quem teria, segundo ele, sido influenciado por ela, mas que se manifestou na sua crítica ao critério de conhecimento das verdades da fé que os católicos diziam ser correto apenas o estabelecido pela tradição da Igreja Mãe. Defendendo-se, como outros reformadores, da acusação de ceticismo, condenou a suspensão de juízo  de Erasmo, chamando-o de cético, já que este considerava impossível acessar a verdade da Revelação e da fé pela leitura simples das Escrituras por conterem passagens obscuras e de difícil compreensão. Erasmo havia preferido a suspensão do juízo e de qualquer esforço teológico de interpretação, defendendo um cristianismo piedoso e simples, deixando para a Igreja Católica a decisão sobre as questões da fé.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BURKE, Peter. O Renascimento. Lisboa: Texto e Grafia, 2008. 
DELUMEAU, J. Nascimento e Afirmação da Reforma. São Paulo: Pioneira, 1989.
MARCONDES, Danilo. “Montaigne, a descoberta do Novo Mundo e o ceticismo Moderno” In: Kriterion, Belo Horizonte, n. 126, dez. 2012, pp. 421-433.
POPKIN, Richard H. História do Ceticismo de Erasmo a Spinoza., trad. Danilo Marcondes de Sousa Filho. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2000.




Hiago Fernandes
27 anos de vida e Fé Cristã. Mestrando em História Social no Programa de Pós-graduação da UERJ e graduado em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). É pesquisador e atua como membro do Grupo de Trabalho do JIIAR (Grupo de Pesquisa Justiças e Impérios Ibéricos de Antigo Regime-CNPq/UFF/PPGHS-UERJ) e do Laboratório de História Regional e Patrimônio (LAHIRP). Atua como coordenador técnico do Seminário Permanente Internacional Cidades e Impérios: dinâmicas locais, fluxos Globais (CIES-Iscte/UFF/Universidade do Minho).

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