Uma definição clássica de Marc Bloch sobre o ofício do historiador, muito reverberada ainda hoje, é o de ser o ogro da lenda. É a profissão ou arte de farejar a sua caça humana, isto é, as ações dos seres humanos no tempo.1BLOCH, Marc. “A história, os homens e o tempo”. In: _____. Apologia da História, ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p. 51-68. Já tivemos a oportunidade de pensarmos sobre os esforços metodológicos, como o uso de fontes e vestígios do passado, de conceitos, visões teóricas de mundo, de tempo, escalas e movimentos da história na tentativa de recuperação do passado, sua problematização e entrelaçamento de conexões com os processos históricos e o presente.
Outra máxima também que comentamos e vale sempre a pena colocarmos em questão é a de que qualquer produção historiográfica, e científica de forma geral, é fruto de preocupações, demandas e perguntas levantadas mediante ao contexto sócio-histórico dos agentes envolvidos, que reverberam nos discursos e visões2FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. Curso dado no Collège de France (197-1978). São Paulo: Martins fontes, 2018. sobre a própria historicidade das coisas. Recoloca-se aqui mais uma vez essa questão, mas adicionando a noção de tempo e horizonte de expectativas sobre o passado, presente e futuro,3KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuições à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC Rio, 2006. além da visão de natureza na própria historiografia e na consciência histórica dos indivíduos.
Com o Iluminismo europeu e suas reverberações em práticas coloniais e imperialistas, é possível observar a abertura do horizonte de expectativa nos discursos científicos, literários, midiáticos, culturais e políticos a partir da ideia epistêmica de que o tempo da natureza é infinitivo e evolutivo, contaminando também a escrita da história e as consciências históricas. Uma visão que recai, inclusive, na ideia de infinitude do ser humano e da natureza em que os seres humanos do capitalismo vivem e exploram como se fosse apenas um substrato ilimitado de recursos e desenvolvimento material.4TURIN, Rodrigo.A”catástrofe cósmica” do presente: alguns desafios do antropoceno para a consciência histórica contemporânea. In: História do Tempo Presente, 2022, p. 141-163.
No entanto, em meio aos diferentes tipos de realidades regionais e mudanças paradigmáticas tem-se cada vez mais sentido em escala global o impacto e as consequências das práticas em nome do progresso econômico, material e tecnológico aprofundadas na globalização e apogeu do capitalismo. Impacto perceptivo que, em suas diferentes manifestações e revisões, acabou por contaminar uma parte da história (disciplina) e a visão de história (regime de historicidade) atuais com o fechamento da perspectiva de futuro em razão da destruição e consequências negativas do consumo capitalista desenfreado na contemporaneidade.
É o que autores recentes têm debatido com o termo “Antropoceno” como um conjunto/período de ações humanas que implicam numa catástrofe ecológica, tragédia econômica, ameaça política que acabam por tornar a história mortal.5TURIN, 2022, p. 143 Ações essas que transbordam sobre a maneira como se faz a história (escrita) e se pensa o curso da história: o momento instável do planeta e as mudanças climáticas fazem com que não haja uma linearidade ou conexão automática entre a linguagem, a experiência da crise e o tempo, nas palavras de Turin.6Ibid., p. 4
Os eventos antes nunca vistos e alterações no próprio meio e sociedades em funções das crises climáticas geram desafios a maneira como pensamos o tempo histórico, como nos enxergamos no processo histórico, como classificamos o presente/futuro, e como nomeamos as novas experiências e agências históricas em meio aos desafios da “catástrofe cósmica”.