Assim como todo o campo do saber, as ciências humanas, especificamente aqui em questão a análise histórica, são marcadas por trajetórias, arranjos e rearranjos em sua composição escrita e analítica. Muitos hão de concordar que a maneira como escrevemos um texto hoje não é a mesma do ano passado e de cinquenta anos atrás. Na história também parece não ser diferente, pois apesar de ser uma constatação simples, é proveitoso considerarmos que ela possui a sua própria história, isto é, os indivíduos, agentes da narrativa histórica, são situados no tempo e no espaço, mergulhados em contextos linguísticos, culturais, econômicos e sociais.
Não somente uma questão do estilo de escrita vem à tona, mas o levantamento do modus operandi do lugar do historiador. Michel de Certeau conceituou a operação historiográfica da disciplina nascida no contexto do positivismo do século XIX. Uma análise arqueológica do terreno do saber que costumava se enxergar na imagem de um detetive com a sua lupa para a observação do espaço e o tempo na busca de absolutos e grandes fatos históricos, como se estivesse imune e indiferente a eles.
Dentre as problematizações das últimas décadas, entre elas a de Certeau, tem-se a ideia de que a história é escrita por uma comunidade de especialistas formados num “lugar social”. Um lugar que não se limita a uma instituição, mas referente a um modo de dizer e de operar ideias, conceitos, de selecionar e creditar as suas fontes. Em resumo: um lugar social de operação historiográfica.
O que atestaria a sua cientificidade, de acordo com essa perspectiva, não seria mais a noção de que está externa aos processos histórico-sociais e detentora de uma única verdade, mas de que a produção de verdades passa por mecanismos de averiguação das regras, dos modos de proceder e consensos do lugar de produção que gera sentidos e créditos a narrativa.
Entre os objetos de averiguação estão os recortes, teorias e metodologias em constantes revisões e debates. Alguns giram em torno das escalas de observação e percepção dos fenômenos. Houve um debate se o campo deveria priorizar análises gerais numa espécie de captação do “sentido do movimento histórico universal” –, enquanto que posteriormente surgiram análises defensoras da interpretação micro-histórica, de observação de casos e fenômenos individuais que contestariam ou complementariam as análises de uma escala maior.
Dicotomias que se criam e se sintetizam. Todas elas a partir de lugares sociais da operação historiográfica com as suas lógicas, também problemáticas e implicações. Uma boa discussão acerca disso foi a análise do historiador Durval Albuquerque sobre a história que se diz regional. A tomada de uma determinada escala ou, de um modo mais geral, de uma ótica teórico-metodológica significa afirmar-se no lugar do campo historiográfico, uma maneira de reivindicação num lugar acadêmico, político e epistemológico.
As opções analíticas, dicotômicas durante o seu percurso, não estão limitadas ao campo da história. Observá-las e fazer constantes problematizações pode ser um caminho produtivo no sentido de se brindar quanto a ingenuidades, tanto nos modos de operação dos campos de saber, como na produção de sentidos, entendo-os como parte da nossa própria trajetória histórico-social, com os condicionamentos, conservações e aberturas a mudanças.
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